Em agosto 2012, agentes, escrivães e papiloscopistas da Polícia Federal (PF) paralisaram seus trabalhos. A greve, que começou no Sul do Brasil, durou cerca de dois meses – mas as negociações se estenderam por quase dois anos. Desde 2010, os agentes, através da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) tentavam articular suas demandas junto ao Ministério do Planejamento, sem grandes avanços.
A categoria pedia reconhecimento. “Foi praticada a greve do zelo”, explica o pesquisador e agente da Polícia Federal de Santa Catarina Antônio José Moreira da Silva. De acordo com ele, o objetivo central era atrair a atenção para a importância do papel desempenhado pelos agentes nas investigações e, assim, reivindicar a regulamentação das suas atribuições, resgatando as funções de uma invisibilidade imposta pela condição de “cargos auxiliares.” “Na prática, os agentes acabavam descrevendo, nos inquéritos, um passo-a-passo de como seguir a investigação. Isso não faz parte da nossa atribuição, mas ficou institucionalizado nas delegacias. Assim, o delegado seguia o que era proposto, levava o crédito e nós seguíamos sem ter, ao menos, o reconhecimento”, conta.
O pesquisador afirma que o movimento congelou um número incalculável de inquéritos. “Apesar de não termos o poder de investigação e de requerimento de informações, e, apesar dos indicativos nos inquéritos serem papel do delegado, não havia nenhum outro profissional que nos substituísse”.
A greve chegou ao ponto de levar profissionais da área a queimarem seus diplomas em Porto Alegre. Eles questionavam a contradição dentro do sistema policial que, até hoje, requer comprovação de qualificação para o exercício dos cargos, mas não reconhece a graduação de nível superior (apesar do formação ser exigida por uma lei de 1996).
Após cerca de 70 dias de paralisações, Moreira da Silva descreve que o movimento se enfraqueceu. Segundo ele, com a proximidade de novas eleições, percebia-se, também uma agenda política. “Havia uma disputa interna. Enquanto nos manifestávamos contra a apropriação intelectual do nosso trabalho, atores da segurança pública viram a possibilidade de perderem capital político que era baseado nas investigações”. Assim, o movimento sindical, junto aos agentes de diversos estados, estabeleceu novas frentes de atuação.
Disputas internas
Intitulada ‘Fogo Amigo’, a dissertação de Mestrado de Moreira da Silva focou nas disputas internas na Polícia Federal em um contexto de debate sobre as reformas das instituições policiais e da investigação criminal no Brasil. Segundo dados apresentados pelo pesquisador, a estrutura da força policial – que faz com que os cargos de chefia só sejam preenchidos por bacharéis em direito concursados – impacta diretamente no nível de resolução dos casos da PF.
“Propomos flexibilizar a rigidez da hierarquia. Conseguimos avançar, com a aprovação da Medida Provisória 650 de 2014, que estruturava uma carreira policial a partir do nível superior dentro das delegacias”. No entanto, no mesmo ano, a Associação Nacional de Delegados da Polícia Federal (ADPF) conseguiu aprovar, junto à Câmara dos Deputados, a MP 657, que reafirmou a subordinação de todos os agentes aos delegados. “Isso manteve a mesma estrutura que temos até hoje, e que impacta nos resultados dos inquéritos”., afirma.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017, 61.283 mortes violentas intencionais ocorreram em 2016 – o maior número já registrado no Brasil. Isso representou uma alta de 4% em relação a 2015, com uma taxa média de 29,7 mortes por 100 mil habitantes. Os dados a respeito de crimes contra o patrimônio mostraram que, em 2016, foi roubado um carro por minuto no Brasil. Nesse mesmo ano, 453 policiais civis e militares foram vítimas de homicídio. Ainda segundo o Anuário, isso ocorre num contexto de redução média de 2,6% nos gastos com políticas de segurança – que atingiram valor de R$ 81 bilhões entre a União, os estados e os municípios.
O sociólogo Michel Misse, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em segurança pública, realizou estudo em que afirma que apenas 3,8% dos inquéritos instaurados para a investigação de homicídios efetivamente embasam denúncias oferecidas pelo Ministério Público.
O Instituto Sou da Paz, que obteve dados sobre a investigação e julgamento de homicídios nos estados do Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Rondônia, São Paulo e Pará apontou para a necessidade da criação de um “Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios”. A pesquisa apresentou uma média de 20,7% de homicídios esclarecidos nos seis estados. O mesmo estudo aponta que boa parte das mortes violentas esclarecidas no país tratam-se de crimes mais simples de investigar, como os ocorridos em contextos domésticos, entre casais, ou que antecederam prisões em flagrante, em geral envolvendo pessoas próximas.
“Dentro das delegacias, existe uma média de apenas 8% de resolução dos casos. Isso é um índice baixíssimo, mas é fácil de compreender. No Brasil, os agentes de polícia atuam em partes do crime. Em outros países, com taxas de resolução mais efetivas e elevadas, o policial acompanha o caso do início ao fim. Por isso defendemos uma reforma das polícias e da investigação criminal”, explica Moreira da Silva.
Reforma policial
Com o final da greve, a categoria passou a se articular em torno da aprovação no Congresso das demandas mais urgentes. A primeira seria a constituição de uma carreira única em todas as instituições policiais, com a fusão das polícias militar e civil. Além disso, a categoria demanda a implementação do ciclo completo de policiamento – sendo responsáveis pela prevenção, investigação, inteligência, planejamento e integração com a comunidade. Por fim, a desvinculação das Polícias Militares das Forças Armadas, fazendo com que o treinamento policial deixasse de ter caráter militar, com reformulação na base de formação policial.
Para Moreira da Silva, a rigidez e a hierarquia militares são inadequadas para um contexto de atuação civil. “O militar é treinado para enfrentar o inimigo. O policial não pode ver a sociedade como sua inimiga, o que se deve fazer é um treinamento cidadão, que preserve os direitos civis – inclusive, os do próprio policial, que deve ter sua liberdade de expressão resguardada. Hoje, o policial não pode questionar autoridades superiores”, explica.
Segundo o pesquisador, tais medidas ganham respaldo entre os próprios policiais. Um levantamento de 2009, realizado pelo Ministério da Justiça, concluiu que os trabalhadores da segurança pública não aprovam o modelo organizacional das polícias em que atuavam. O estudo indicou que apenas 15% dos policiais militares brasileiros defendiam a manutenção do atual modelo de polícia; 77% queriam mudanças. Nas polícias civis, 56,4% dos delegados e 51,2% dos agentes também desejavam mudanças.
Em 2013, o senador Lindberg Farias (PT) apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional que englobava esses tópicos e outras demandas da categoria. A PEC 51/2013, passou a tramitar em conjunto com outras propostas de emendas à Constituição que versavam sobre assuntos semelhantes.
Por conta da amplitude e da profundidade das alterações pretendidas pelo apensado, o Senador Randolfe Rodrigues (Rede), em setembro de 2017, emitiu um Relatório Legislativo onde defendia que só seria possível prosseguir na análise da unificação da carreira da Polícia Federal. Segundo o Senador, esse seria o ponto com maior abertura para um consenso entre os legisladores. “Por esse motivo, os esforços do sindicalismo da Polícia Federal foram voltados ao patrocínio de propostas com maior possibilidades de aprovação pelo Congresso Nacional”, pontua Moreira da Silva.
Apoio político
O trâmite desse apensado de projetos fez com que fosse criada uma Frente Nacional de Agentes da Polícia Federal para pressionar o Legislativo. “Mas, junto com isso, veio uma mudança de estratégia”, conta Moreira da Silva. Historicamente apoiado por acadêmicos e políticos alinhados à esquerda, o movimento dos agentes passou a perceber um avanço do conservadorismo, aproximando seus interesses de nomes ligados a bancadas de direita.
Nas eleições de 2018, três nomes que foram apoiados pela frente se elegeram deputados federais. São eles os policiais federais Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), candidato mais votado do país, Ubiratan Sanderson (PSL-RS) e Aluisio Mendes (PODE-MA).
Sanderson foi uma liderança sindical relevante entre os brigadianos, chegando à presidência do SINPEF/RS (Sindicato dos Policiais Federais do Rio Grande do Sul). Aluisio Mendes, que foi reeleito, foi membro de diversas comissões permanentes da Câmara e integrante das CPIs do Crime Organizado e dos Crimes Cibernéticos.
Já Eduardo Bolsonaro, filho do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), representa uma incógnita para o movimento. Favorável à militarização do ensino e autor de projetos de lei pela valorização das forças armadas enquanto “instituição sólida”, Eduardo Bolsonaro inspira dúvidas sobre como e se pautará as demandas da Frente na Câmara. “Com o crescimento do PSL nessas eleições, percebe-se entre os agente e policiais a crença de que a reforma pode ser levada para a frente, mas a família Bolsonaro é alinhada ao militarismo, o que não corresponde a uma das principais demandas da reforma”, diz Moreira da Silva.
Em vídeo gravado ainda durante a campanha de Jair Bolsonaro à presidência, um policial civil o questiona sobre a possibilidade de aprovação da reforma policial em seu governo. “A reforma do modelo de segurança pública é necessária, principalmente a implementação da carreira única. Qual o seu posicionamento, deputado?”, questiona o policial. Ao pegar o microfone, Bolsonaro diz: “Minha resposta vai desagradar a todos. Particularizar certas questões é somar à minha derrota. Nós sabemos dos problemas. Temos que buscar produtividade. Mas gostaria de não responder. Não é o presidente que vai mudar o futuro do Brasil, ele vai dar um norte. […] Eu não quero atender os agentes e não os delegados.”
Para o pesquisador, isso demonstra a complexidade e a necessidade de mudança dentro da Polícia Federal. “A adesão de uma parcela dos policiais federais ao discurso conservador – e às ‘soluções fáceis’ para a segurança pública – representa uma verdadeira contradição com a base epistêmica de seu discurso de mudança. Esse novo discurso também contrasta com os objetivos perseguidos pela Fenapef, criada no limiar da redemocratização do país, para combater o autoritarismo e para contribuir com a transformação do conceito arcaico e ultrapassado de polícia repressiva e repressora para o de polícia cidadã, integrada e unida à sociedade no combate ao crime”, afirma Moreira da Silva, em seu estudo.
Fonte: Sul 21